A passagem de um ano para o outro nada muda em nós. Sabemos disso, mas cultivamos a ilusão de que alguma coisa nova começa. É difícil encarar o novo ano em lhe dar cores utópicas.
Um bom cardápio dessa utopia se encontra em “Vou-me embora pra Pasárgada”, o famoso poema de Manuel Bandeira. As imagens da Pasárgada do poeta correspondem a nossas fantasias comuns – algumas ingênuas, outras atrevidas. Algumas cínicas em seu pragmatismo, outras inocentes e gratuitas como o espírito que faz soprar a poesia.
Para muita gente, a maior delas é “ser amigo do rei”. Cair nas boas graças do maioral da Corte é fazer parte de uma confraria seleta, que tem acesso a mordomias e prazeres proibidos ao resto dos mortais. Verbas, cargos, comissões, imunidades. Quantos não sonharão hoje à noite com um passaporte para esse reino exclusivo, onde se ganha muito e de onde se sai com uma régia aposentadoria?
Outros preferem ter “a mulher que querem, na cama que escolherão”. Difícil é escolher uma mulher só, já que em Pasárgada todas vão olhar para você. Todas não, assim também é exagero; só as bonitas.
Há quem sonhe com prazeres simples, como “fazer ginástica, andar de bicicleta, tomar banho de mar”. Ter coragem e disciplina para ir à academia é o ideal de matronas e socialites que já se convenceram de que ninguém emagrece sem suar. Muitas sabem por experiência que é inútil a cirurgia de redução do estômago. Depois de uns meses, o órgão se recompõe e parece que se torna mais voraz.
Há utopias para todos os desejos na composição de “São João Batista” do nosso Modernismo. Em outro de seus famosos poemas, ele lamenta “a vida que podia ter sido e que não foi”. É isso que nos tornará tristes quando cruzarmos (bêbados ou não) o umbral de mais um ano.
Não há utopia que nos console desta certeza crua, a que chegamos toda vez que morremos um pouco, como agora: nossa vida é um desvio, uma cópia embotada do que podia ter sido – e não foi.
De qualquer modo, leitor, feliz 2020.